quinta-feira, 7 de maio de 2015

A Carruagem de Charlotte ou, A homenagem às Disposições


DES-ABDUÇÃO DOS JEGUES

Pronto, aqui vou eu de novo, apoquentar a sua noção político-estética!

E de certo modo, penso, irei contrariar pessoas legais e até mesmo coerentes, mas que se apressaram, sentando-se de modo preguiçoso no divã Facebook, como se diz por aí: “Deram os burros n´água!”.

Cansei, ouvi, li, cansei, e finalmente decidi opinar sobre o Monumento aos 150 anos de Campina Grande. A tal chegança dos tropeiros à sesquicentenária cidade. A grotesca obra tem denominação técnica: Memorial e Centro de Informações Turísticas de Campina Grande, não se restringe, portanto, ao externo visível, por dentro dele, existe uma sala-de-reboco moderna. É uma estrutura múltipla, um prédio-monumento que abriga, o tal Monumento, tecnicamente chamado de “Memorial alusivo à comemoração ao 150° (sesquicentenário) de Campina Grande”. Esse é o nome do bicho, não há, portanto, até o momento, um nome específico, fora as inúmeras alcunhas que tem granjeado, de “bicho papão” à “enterprise de jegue”.

Como todo bicho papão tem fome de angu, esse aí não foge à regra licitatória de comer dinheiro. O valor contratual inicial foi de: R$ 1.459.177,22; foi! Porque a fome insaciável exigiu mais vitamina: o velho e bom aditivo, de R$ 1.221.704,01, totalizando uma merenda de R$ 2.680.881,23, de nosso erário. Para entender a matemática submersa nos números, imagine a seguinte situação: um tropeiro acordou levar uma carga de algodão do sertão à Campina, por 15 sacas de moedas. Mas, na metade do caminho percebeu que a empreitada valia mais uma metade do que cobrou. Voltou à cidade e “pediu” mais 15 sacas. Para não perder a viagem da carga o comerciante, dono dos feixes de algodão, deu novamente mais 14 sacas, conseguindo assim destinar sua mercadoria (Moral: “Na política, o casual é álibi e consolida a regra”).

DISPOSIÇÕES GRATUITAS

Mas quem é essa tal Charlotte? Bom, Ela ainda não existe. Mas não se espantem com surgimento de uma geração de Charlottes, advinda da glória homenagem à nova princesinha Charlotte de Cambridge, recém-nascida do seio da coroa inglesa, neta da antiga princesa Diana Frances Spenser, a eterna Lady Di, e herdeira indireta do Palácio Kensington da Inglaterra.

Essa novata personagem, decerto inspirará versões piratex mundo afora. (com um t, com y e demais variações dialetais). Nossa cultura, pródiga à ingestão refreada de modismo, dará sua contribuição à existência de Charlottes tupiniquins (os tanto nomes indígenas bonitos aguardarão o toque midiático para nomear nossos filhos).

Pronto, acho consegui chegar, com Charlotte, ao pondo de ebulição da questão central sobre o “juízo de valor”, ou “disposições”, declaradas alhures sobre alguém, objeto ou fato e que chamarei, neste caso do Monumento, de Carruagem de Charlotte. Ou seja, o modismo gratuito, também conhecido como ausência de senso político confundido por senso estético. Esse modismo é a correia desatada das ovelhas. É a gratuidade do senso, é a incapacidade de ler por trás da notícia.

Com isso, nos aproximamos finalmente ao dorso da “aisthépausis” (estética). Pois, no que tanque ao gosto estético especificamente, tema e pauta desta minha opinião, nos situamos em geral, no jardim da infância, ou seja, muita ludicidade, constante aprendizado e maturação crítica sobre a realidade. 

Sobre esta nossa verde condição de leitura, de apreensão do objeto estético, o sociólogo e historiador Pierre Bourdieu atribui ao mecanismo de apressamento do juízo, que ele chamará de disposições: “um conjunto de regras, que em geral as pessoas incorporam de maneira inconsciente, como o gosto estético, as posturas éticas, as ‘naturalizações’ de aspectos cognitivos e até mesmo físicos ligados à identidade”. Para mim, as disposições são como simpatias gratuitas que in-voluntariamente tomamos para os fenômenos e relações sociais.

Como todo conteúdo pisco-ideológico, as disposições ou simpatias gratuitas nascem de nossa interação social, estando insufladas por apressamentos e acomodações que intentam adequar as “nossas visões de mundo” sobre o próprio mundo, digo, à nossa realidade.

No caso da princesinha Charlotte, tem-se uma simpatia gratuita, que se ativa como adesão sociológica “sub-objetiva”, pontuada no cotidiano por uma política de encaixe particular, pessoal. Enquanto que, no caso do Monumento, a simpatia gratuita revela-se não-receptiva, por içada uma denegação voluntária, fruto de uma tensão entre a poética cultural que se instala no cotidiano e a expectativa cultural do sujeito, cujo apelo social é amplo, como um fórum presidido por cruzamentos de subjetividades.

ESCONDE-ESCONDE ENTRE A POLÍTICA E A ESTÉTICA

O que noticia o Monumento? Digo, que tipo de disposições faturam um gosto final para ele? Minha hipótese indica a ausência de publicidade de autoria e de prévio debate público sobre “a nova tatuagem” a ser feita no corpo da cidade.

Aliás, conheço obras públicas em nossa cidade bem mais toscas e frágeis, e que perto de nossa “tropa de burros”, figurariam como seus despojos orgânicos à beira do longo caminho. (pense-se na precária utilidade prática e intensa utilidade estética do viaduto de fluxo trocado! Um aleijão advindo de uma má cirurgia, cujo resultado plástico satisfaz a expectativa estética).

De todo modo, se hoje vemos nascer um monumento, fechamos os olhos ao desaparecimento e desgastes de obras públicas importantes como a sumida escultura “A Samaritana”, de Abelardo da Hora. E o que dizer do desleixo - já histórico - pelo Parque Evaldo Cruz, marco da modernidade urbanística de Campina? Notar-se-á nestes casos, a autoria dando crédito às obras.

Reparem que, ao tocar na não-autoria do Monumento, acabo por adentrar no aspecto pedagógico para uma “curtição” estética. Sem um aprendizado consolidado, as obras de arte tombam ante a ignorância de olhares preconceituosos e sem preparo. (não querendo afirmar que o Monumento em questão é uma obra aquilatada). Avalio que, se mostrasse aos seus apressados críticos um quadro de Miró, sem lhes revelar a autoria, tomariam (à primeira vista) como rabiscos infantis (malfeitos?).

Na estética, o risco da ignorância é descomunal ao tamanho ou funções das obras. Lembrem-se das recentes tentativas de inquirição, na capital do estado, do Porteiro do Inferno, e da medíocre doxa às obras xangozeiras-diabólicas dos contornos públicos daquela cidade (boas aulas que tivemos, mas de raso aprendizado político, dirá estético!) ou seria o contrário? A polêmica causada deu aprendizado estético diante a utilização política?

Voltando ao nosso Monumento, o que está em jogo, até aqui, não é a estética, mas a política. Walter Benjamin, que não é menino besta, já entendia que é incompletude crítica dissociar “política, arte, técnica e magia”. Tá dado o toque de que não podemos ver apenas a superfície imaginativa que toca as patas dos burros. A técnica política que ali os colocaram, faz parte da compreensão do fenômeno.

Afinal, no caso deste Monumento, estamos observando um monumento artístico-estético ou um ato político-cultural?

No plano imaginário, a ideia expressa na composição do Monumento até que não é simplória. Imagina reatar o passado histórico (o início da cidade com a ação dos tropeiros, representada por um realismo de apurada técnica), com o futuro de progresso (a estrutura-base de onde sai a tropa). Uma mensagem construída por termos invertidos. Tal inversão é até bem composta: o futuro devolve a história.

Ler estes signos intrínsecos à obra não é requer maiores esforços. A “mensagem” da homenagem se consolida sob estes dois elementos: uma estrutura futurística e uma cena do passado representada. Quem disto discordar, estará vendo chifre em cabeça de burro. O que sobra então, que não agrada? É tão difícil imaginar tais junções? Sim, ao menos que... Não, ao menos que... Prevaleça a contradita gratuita. 

TAPADEIRAS ORÇAMENTÁRIAS?

Suspeita-se, no aqui e ali de toda cidade, dos re-milhões gastos à toa. Parece que é este o alimento nutritivo da não aceitação estética, digo, da disposição à priori zombeteira. Este tema dos re-milhões nas obras públicas é caminho de roçado para nosso coração citadino. O que me faz lembrar outro marco na história urbanística de nosso condado.

Penso: até que ponto estamos aproveitando a “estética” das calçadas que cobrem o centro da cidade? Um ladrilho bonito, que reverencia, talvez, o patrimônio Décor e a vocação progressista da cidade. Pinçadas ao preço de pedras de brilhantes, quando à época, a gestão assumiu tal necessidade estética-urbanística para a cidade que comemorava o “boom do milênio”.

Também aqui, sobra asfalto estético e falta senso político. A aceitação (simpatia gratuita) deu-se vergonhosamente submissa e calada. No encalço desta futuralidade estética ninguém sequer viu o rabo de um largo panorama de lazer nas margens do Açude de Bodocongó...Foi-se também, rio abaixo do esquecimento, isto é, com os burros n´água! Bem no meio empoeirado de nossa Campina, há uma belíssima praça, abandonada, bem no centro financeiro da cidade, numa bifurcação em formato “ferro de engomar”. Nada ali informa senão uma junção operativa de transeuntes e alimárias mecânicas.

Quais denegações possuem o enfeite estético das calçadas, a feiura dos açudes urbanos e das praças históricas da cidade? Se me respondem que são estéticas que moram no passado, só posso entender a birra com o Monumento, como uma birra conta o futuro. Sendo forçado a comunicar que extraímos de nosso passado os rabiscos do futuro. Cuidar do passado é a maneira mais producente de garantir o futuro. Caso não estejamos lembrando que a política nada mais é que um combinado entre os presentes sobre o futuro. Mas não à todo custo, como tem feito a atual gestão.

Garanto, que, se o escritório de arquitetura (a empresa executora, a Construtora Rocha Cavalcante LTDA) tivesse se empenhado em divulgar a concepção, as credenciais dos artistas (?), e no desenvolvimento de qualquer ação artístico-social com uma escola municipal, tudo isto estaria noutro patamar de aceitação estética, ou melhor, política.

Pois, ao lado dos berros descontentes, ouvem-se murmúrios do gasto desnecessário que a atual gestão fez, ao produzir tal monumento (há uma opção muito cara socialmente, mas que eliminariam os berros: demover o colosso! E aqui fica a dica: a força de um não é igual à força de todos). Longe de ser uma incitação violenta, a destruição do colosso perpassa e cobra, a consciência política de que a sinergia coletiva é bem maior que a soma dos unitarismos (contudo, o cadeado está fechado, pois, delegamos a alguns poucos os muitos poderes que temos).

E aqui, transformo minha hipótese inicial em tese provocativa: para sentir o gosto da estética, o cidadão deve antes pagar ingresso à politica, que deve reverter-se em bem social (o sentido de pagamento, como se vê, ironiza, de um lado, a socialização dos interesses do grupo - pela participação política-; e de outro, que há um preço a pagar: a participação).

PUXA COM FORÇA QUE ATOLAMOS!!!

Não gostaria de duvidar que tal colosso, nosso Monumento, não “homenageou” o Orçamento Participativo...Se não o fez, de fato, merece toda a nossa repugnância política, não estética. De minha parte, não acho o Monumento a nona maravilha do mundo moderno. Apenas me incomodo diante a negação gratuita que mais das vezes esconde o incômodo político.

Magnífica é a coincidência história desde Monumento aportar exatamente onde os burros pousavam, o lugar do Berro D´água.

Diz a lenda que o prumo dessa viagem futurística careceu de legalidade por parte dos representantes municipais...(de certo modo, o jeitinho mineiro do prefeito Romero, mostra-se excelente à estratégica de, no grito e por cima de pau e pedra, fincar seu nome como o segundo modernizador da cidade. Cá pra nós, até que o tropeiro lá no alto do espaço, possui semelhança física com o prefeito. Um pouco de ficção não faz mal, né?) “Será arte...?”

O embargo do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado da Paraíba (IPHAEP), e a conclusão da Promotoria do Meio Ambiente e Patrimônio Social do Ministério Público do Estado da Paraíba não me deixam mentir que esta Carruagem de Charlotte, mesmo atolada pelas leis, é erguida para além do Berro D´água como um cabo de guerra entre o passado e o futuro. Diante mão já ganho pelo velho campeão: aquele que grita mais alto “arre égua! Tenho recursos próprios e recursos da legislação do poder...!”.

O VALOR MAIOR: O TEMPO DA MEMÓRIA COLETIVA

Se em 1907, o trem do progresso atrasou, em sua primeira vinda à cidade; agora, o novo veículo, “a nave de burros” se mostra afinado à história, com um atraso monumental, fazendo descarrilhar os pilares das leis, sob o velho pão e circo, digo, desenvolvimento turístico.

O test-drive estético, ao contrário do viaduto, será menos danoso e até surpreendente, quando abarrotado de turistas, os burros e o “solitário tropeiro”, se tornarão pano de fundo nas alegres fotografias.

Pecou a gestão pelo mau planejamento e desrespeitos ambientais e patrimoniais, por confiar somente à placa dos gastos, uma informação tão importante que é registrar a memória da política da cidade por meio de uma estética. Pecou a empresa que não otimizou seu serviço à serviço da transparência, da produtividade pública (interesse maior da gestão). E tem pecado o munícipe ao exortar para o inferno uma imagem que não compreende, pois senta-se na cadeira da política pensando avaliar a condução estética (sabe nada inocente!)

Diante tantos pecados, omissões e julgamentos resta-me vaticinar: amanhã, no futuro, estará uma menina de nome Charlotte, sentada à frente do Monumento, imaginando como foi extraordinário, começarmos com um bando de burros a uma cidade tão ímpar.



Fhio Ubu. ANO 119 REX PATAFÍSICO