Passolini (2014) Fantástico longa, talvez intragável aos purinanos diletantes,
contumazes nos ecos dos mass media, capazes de tomar a tendência distrópica de Mad Max: dias da fúria, como rescaldo
feminista; talvez delicioso e inesquecível àqueles que já assistiram as
películas de Pier Paolo. Coisa do outro mundo é a mágica interpretação do ator Willem Dafoe, perfeita, parece que Passolini
encarnou-se. Como na reconstituição da última entrevista, dois dias antes de
sua morte.
O pensamento-imagem de Passolini
passado a limpo tanto nos diálogos - que recobrem sua filosofia de cena -,
quanto nas texturas da imagem, no trabalho de arte e nas referências de seus
filmes, devido ao teor biográfico do filme. Em suma, mais uma vez o Diabo (entenda-se
Hollywood) mostra seu em-canto ao
banhar a sétima arte de Passolini com a técnica-arte da sétima arte.
Nos 76 minutos de duração, os
difíceis contrastes da socialização humana do cineasta italiano, que poderiam
ser roteiro direto às ressentidas amarras foucaultianas, são exibidos com
fidelidade: as enfurecidas liberdades próprias de Passollini, numa trama que
rejuvenesce os cultos paginados do cristianismo às suas mais primitivas
“epifanias”.
O filme atualiza a pauta de
Passolini da moral no sexo católico presentes em “Saló”, “Medéia”, “Decameron” e
tantos outros filmes do mestre “Pier”, o que, aliás, atualiza nossa rusga mais
atual sobre a sociedade e sua Festa da Fertilidade do novo-velho sexo. Digno de Passolini é a cena do “sacrifício”
heroico de gays e lésbicas pondo de lado suas incompatibilidades por um dia. Vale
dizer que, nesta cena, o texto, ganha da imagem. Por ele vemos a ironia da
des-opressão. Já a cena final, as imagens fazem ressoar um texto bem mais
atual: violência da intolerância às diferenças.
Um dos pontos estruturais do
filme é o flete com a literatura. Deste a auto-identificação de Passolini como “escritor”;
os posicionamentos teóricos sobre estética narrativa “a arte narrativa está
morta e nós estamos de luto”, diz o protagonista na revelação escritural de um
romance, que o espectador acompanha a gestação. Esse romance é leitmotiv de toda a narrativa fílmica,
sedimentando sua estrutura e progressão. Como se registrasse os últimos
sons-ideias do escandaloso diretor dos anos 60 e 70.
Uma possibilidade plausível à
compreensão do filme é enxergar o romance como personagem, ou como a memória de
Passolini negociando sua salvação do Leht quando opta pelo cinema e não a
literatura, como expressão maior à sua negociação artística com a sociedade. O expectador
acompanha as passagens do romance a partir de um novelo de frases-teses que
Passolini expõe a seu interlocutor, Alberto.
São nestas frases, na verdade,
máximas provocativas que a literatura faz-se evidentemente poderosa na subjetividade
de Pier Paolo Passolini. Como por exemplo: a de que “democracia continua o
santo jogo dos reis”; “sexo é política” e na esplêndida: “eu sou uma forma,
cuja consciência é ilusão”.
Para os fãs de “Pieruti”, como
sua mãe o chamava, o bônus do filme vem nos depoimentos, trazidos no pedido de
análise de seu romance e na intimidade familiar de Passolini, momentos que promovem aproximação e dá humanidade ao mito
do cinema italiano e mundial, que soube fazer arte com as aporias e tabus mais
caros da sociedade confusa entre aceitar que “uma” liberdade é possível apesar
dos traumas. Passolini tornou-se um mainstream de um tipo de cinema (cinema de
arte), que ajunta militância, provocação, debate e estética.
Na última cena, a agenda, aberta
nas datas 6 e 7 de novembro de 1975, apontam compromissos, anotações e números
de telefones, que não se realizaram devido seu assassinato no dia 2 daquele
mesmo mês. Filmaço!!!